terça-feira, 30 de novembro de 2010

Dedico ao meu amor...

Carta de Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz
Ofelinha,

Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa -o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte, nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ofelinha outro tanto, não é verdade?

Nem a Ofelinha, nem eu, temos culpa nisso. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem.
O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade desta ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima ou a gratidão, que ele deixou.

Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?

Na sua carta é injusta para comigo, mas compreendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com mágoa, mas a maioria da gente -homens ou mulheres- escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ofelinha tem um feitio óptimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua culpa.

Quanto a mim...
O amor passou. Mas conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei nunca -nunca, creia- nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequenina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua índole amorável. Pode ser que me engane, e que estas qualidades que lhe atribuo, fossem uma ilusão minha; mas nem creio que fosse, nem, a terem sido, seria desprimor a mim que lhas atribuísse.

Não sei o quer que lhe devolva -cartas ou o que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memória viva de um passado morto, como todos os passados; como alguma coisa de comovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos anos é par do progresso na infelicidade e na desilusão.

Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor.

Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e embora na vida adulta sigam outras feições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.

Que isto de 'outras afeições' e de 'outros caminhos' é consigo, Ofelinha, e não comigo. O meu destino pretence a outra Lei, de cuja existência Ofelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.
Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.

Fernando
29/11/1920

PESSOA, Fernando. Correspondência. 1905-1922. Organização de Manuela Parreira da Silva. São Paulo: Cia das Letras, 1999. p.361-363.


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